Tarcísio não ouviu a UNESCO e deu no que deu

No final de julho, para a perplexidade geral, a Secretaria Estadual de Educação de SP anunciou, do nada, que iria descartar o material didático recomendado pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) do Ministério da Educação, a partir de 2024, para usar material próprio. Se tivesse levado na devida consideração o relatório que a UNESCO publicou alguns dias antes, em 26 julho, propondo uma série de princípios a serem seguidos na implantação de tecnologias digitais na educação, o governo paulista talvez não tivesse se metido no tremendo imbróglio que criou para si mesmo. Além de ácidas críticas por parte das mais variadas origens do espectro político e social, em pouco mais de um mês teve que amargar duas imposições judiciais. Uma, para voltar atrás e continuar com o PNLD. Outra, mais recente, de suspender a divulgação de seu material próprio até que erros os mais absurdos em diversas disciplinas sejam corrigidos.

Educação paulista foi parar na Justiça

A recusa ao PNLD foi anunciada pelo novo secretário de educação, Renato Feder, em 31 de julho, quando proclamou a total digitalização dos conteúdos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, substituindo os livros do PNLD por material próprio e digital. O MPSP (Ministério Público do Estado de São Paulo) reagiu alegando “inconstitucionalidade e ilegalidade do referido ato”, e ainda que a Secretaria de Educação havia excluído São Paulo do programa sem consultar a rede estadual de ensino.

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Após idas e vindas, com declarações de apoio e confiança no secretário (“preparadíssimo, estudioso, entusiasmado e idealista”), o governador Tarcísio acabou tendo que voltar atrás na decisão de recusar os cerca de 100 milhões de livros doados pelo Ministério da Educação.

Como noticiou o Metrópoles, “o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, na noite desta quarta-feira (16/8), que o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) adquira os livros didáticos do Ministério da Educação, que haviam sido recusados para as escolas da rede estadual a partir do 6º ano”.

Qualidade do material didático também

Em uma segunda decisão judicial, já no início de setembro, a juíza Simone Gomes Rodrigues Casoretti, da 9ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, determinou que o governo do estado retirasse do ar, em até 48 horas, o material digital utilizado por estudantes da rede pública de educação. A decisão foi tomada após a divulgação de que slides das apostilas continham erros graves de informação.

Também noticiada pelo Metrópoles, a matéria prossegue: “A ação popular contra o material didático foi movida pela deputada estadual Professora Bebel (PT), segunda presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado (Apeoesp). Na sentença, a juíza determina a suspensão do material digital “até que seja revisado e siga os padrões estabelecidos pelo Ministério da Educação e diretrizes curriculares”. A multa é de R$ 10 mil por dia caso não seja cumprido o prazo de 48 horas”.

O material distribuído pelo estado tem sido objeto das mais severas críticas. E não é para menos, pois entre outras aberrações, amplamente divulgadas pela imprensa, é ensinado que Dom Pedro II, e não a princesa Isabel, assinou a Lei Áurea, e Jânio Quadros, “quando prefeito de São Paulo”, proibiu o bikini nas “praias da cidade”. D. Pedro nem estava no Brasil no 13 de maio de 1888, por isso foi a filha que assinou a lei. E Jânio era presidente, e não prefeito, quando proibiu o bikini, mas não nas praias da capital do estado pois, como é de conhecimento universal, estas não existem.

“A aula é uma grande TV”

Os problemas de confiabilidade do novo material didático com que o governo está promovendo sua ingerência na educação paulista, talvez sejam melhor entendidos a partir das justificativas a seu favor usadas pelo secretário. Uma das mais notórias é sua concepção de que “a aula é uma grande TV”, quando expressou a sua fé no PowerPoint em entrevista ao Estadão em 02/08/23.

“A aula é uma grande TV, que passa os slides em Power Point, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, disse Feder ao Estadão. Desde abril, a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) tem indicado aos professores que usem o diário de classe digital, onde estão aulas de todas as disciplinas, organizadas em cerca de 20 slides. O professor abre a aula em seu celular ou computador e projeta na TV da sala”.

Este pragmatismo imediatista, sustentado pela fé nas potencialidades do PowerPoint como instrumento de ensino, está longe de ser referendado internacionalmente por autoridades em educação. Começando pela UNESCO.

A UNESCO recomendou, mas não foi levada em consideração

Dias antes do “digitalizaço” anunciado pelo governo, um relatório da UNESCO foi dedicado a recomendar que ferramentas digitais na educação fossem adotadas de forma gradual e planejada, totalmente o oposto do propalado pelo governador e seu secretário.

Publicado em 26 de julho, o documento, Tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?“(“ Technology in education: A tool on whose terms?”) é a edição de 2023 do “Global Education Monitoring Report”. Faz parte de uma série que se propõe a avaliar anualmente a evolução da quarta das 17 metas do milênio da ONU, “Educação de Qualidade: Garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”.

Os preceitos defendidos ao longo do relatório são sintetizados no seu final:

Este relatório recomenda que a tecnologia seja introduzida na educação com base em evidências que demonstrem que ela seria apropriada, igualitária, escalonável e sustentável.

A nova tecnologia deve ser apropriada

O relatório da UNESCO destaca a falta de governança e regulação para garantir a devida apropriação da tecnologia para fins educacionais. Conclama os países a estabelecerem normas de implementação que garantam que a tecnologia jamais substitua o ensino presencial conduzido por professores.

=> UNESCO issues urgent call for appropriate use of technology in education | UNESCO

Isto porque a noção de tecnologia apropriada está associada à sua adequação às demandas sociais do local onde será aplicada e desenvolvida. Mas os interesses envolvidos na digitalização pretendida pelo governo de SP não parecem ter aí o seu foco, muito pelo contrário.

Feder e a Multilaser

Uma questão que vem aparecendo na mídia com frequência é o fato do secretário Renato Feder ter interesses diretos na comercialização de serviços de informática para escolas.

De acordo com o Metrópoles, em matéria publicada no final do ano passado, Feder, ainda como secretário da educação do governo do Paraná, detinha 28% das ações da Multilaser. E a Multilaser, por sua vez, segundo seu site corporativo, é uma empresa que, entre outras operações, atua no “desenvolvimento, fabricação, distribuição, venda e pós-venda de diversos produtos em diferentes áreas como tablets, smartphones, notebooks, pen drives, chips de memória, acessórios de informática, eletroportáteis…”

A reportagem, “Empresa ligada a Feder faturou R$ 192 mi com pasta que ele irá chefiar”, relata que de 2003 e 2018 exerceu os cargos de vice-presidente da empresa e de presidente do conselho. Em 2019, renunciou após assumir a pasta da educação no governo de Ratinho Júnior (PSD) no Paraná e, desde maio do ano passado, é conselheiro da companhia. De acordo com a Carta Capital, Feder é ainda sócio da offshore Dragon Gem, dona de quase 28,16% da Multilaser, que inclusive continua a vender equipamentos e serviços para o governo

A reportagem mostra ainda que o envolvimento do secretário com a secretaria de educação de SP vem de anos anteriores a seu atual cargo. Entre 2017 e 2018 atuou como assessor não remunerado da secretaria durante o governo Alckmin. O contrato de 192 milhões foi iniciado sob sua acessoria ainda no governo Doria, e fechado por ele no final da gestão Rodrigo Garcia em 21 de dezembro de 2022, quando já sabia que seria secretário da educação de Tarcísio. E na gestão atual, os serviços com a Multilaser continuam a ser contratados pelo governo.

=> Em menos de um ano, governo Tarcísio fechou três contratos com empresa de secretário de Educação

Deve ser Igualitária

Como consta do portal do MEC, “O Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) é destinado a avaliar e a disponibilizar obras didáticas, pedagógicas e literárias, entre outros materiais de apoio à prática educativa, de forma sistemática, regular e gratuita, às escolas públicas de educação básica das redes federal, estaduais, municipais e distrital e também às instituições de educação infantil comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público”.

Com a nova política de educação de SP, este princípio de universalidade dos meios educacionais será substituído por contratos com as empresas fornecedoras da tecnologia, notadamente a Multilaser. O que implica a aquisição de equipamentos e acesso à internet, o que nem sempre será factível de se multiplicar a curto prazo para as periferias e por diversos estados da federação. A questão é destacada pela educadora Theresa Adrião em entrevista à Folha:

“O acesso a recursos digitais é desigualmente distribuído pelos territórios. É desnecessário lembrar toda a dificuldade passada pelas populações das periferias para acessar a internet”, disse. “Além disso, a subordinação dos processos pedagógico a plataformas digitais despersonaliza a necessária relação entre docentes e estudantes”, afirmou Adrião, que é pesquisadora de políticas educacionais e coordenadora da Rede Latino-Americana de Pesquisadores em Privatização da Educação.

Além disso, a digitalização a jato que quer o governo vai requerer o acesso imediato a aplicativos de custo elevado, particularmente para os estudantes de baixa renda.

Deve ser “Escalonável”

Os impactos das novas tecnologias, segundo a UNESCO, devem ser escalonáveis, ou seja, mensuráveis. Aferir os ganhos pelo aprendizado trazido pelas novas tecnologias, auditados por entidades imparciais, se faz mais do que nunca necessário segundo o relatório. As análises disponíveis são em geral disponibilizadas pelos próprios fornecedores da tecnologia, e portanto tendem a ser promocionais e pouco confiáveis.

Mesmo porque a prática vem trazendo evidências de que a introdução não controlada das novas ferramentas, como se pretende em SP, tem trazido resultados bastante negativos.

Marcante foi a experiência da Suécia. Em entrevista ao Estadão, a sua ministra da educação, Lotta Edholm, informou que “após 15 anos migrando progressivamente do material didático impresso para o digital, neste ano vai investir o equivalente a R$ 315 milhões em livros”.

Estamos em risco de criar uma geração de analfabetos funcionais” advertiu a ministra após ver a nota do país despencar no Estudo Internacional de Progresso em Leitura (PIRLS), exame internacional que avalia o desempenho em leitura dos(as) estudantes.

=> Por que a Suécia retomou livro impresso? ‘Criança aprende mais do que no tablet’, diz ministra.

Deve ser Sustentável

O relatório chama a atenção para a necessidade de investir em educação básica para fundamentar o treinamento em habilidades digitais. Ressalta a importância do professor no fornecimento da base conceitual necessária para que as ferramentas computacionais sejam dominadas e utilizadas com o devido senso crítico. É claro ao afirmar que o desequilíbrio causado pela tecnologia, quando usada em excesso, leva ao desaparecimento do aprendizado, enfatizando que a distribuição de computadores não melhora o aproveitamento se professores não são envolvidos na experiência pedagógica. O que mais uma vez contrasta com o caso paulista, onde, segundo diversas fontes, as decisões sobre a digitalização do ensino fundamental foram todas de gabinete, sem consulta aos professores da rede estadual.

A medida foi tomada sem qualquer consulta às escolas e sem ouvir especialistas da área educacional, como afirmou Angelo Xavier, representante da Associação Brasileira de Editores e Produtores de Conteúdo e Tecnologia Educacional (Abrelivros), em entrevista ao O Globo, sendo uma decisão unilateral feita diretamente no gabinete do secretário de educação”.

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Por sua vez, em artigo publicado no Jornal da USP, a professora Janice Theodoro da Silva conclui que “O plano do governo de São Paulo tem como objetivo interferir na forma de educar as crianças e os jovens por meio de plataformas digitais, desmobilizando o papel do professor em sala de aula, reduzindo os conteúdos, intensificando a vigilância em sala de aula e a repetição à exaustão. O objetivo não é educar, mas pontuar posteriormente na avaliação.

=> Praia em São Paulo, avaliação e democracia

E os erros continuam…

As declarações do secretário em transformar aulas em “uma grande TV” foram acompanhadas de observações depreciativas em relação ao material didático do MEC. Como registrou o Estadão,

[…] De acordo com ele, o governo estadual também identificou que o material que seria distribuído pelo PNLD em 2024 estava “mais raso, mais superficial” e “tenta cobrir um currículo muito extenso de maneira superficial”.

Esta, o entanto, não é a opinião de inúmeros especialistas da área, o que inclui educadores de escolas de ponta:

“Muitos dos livros didáticos rejeitados pelo governo de São Paulo para a rede estadual são usados por escolas particulares de ponta na capital. […] O Colégio Miguel de Cervantes, na zona sul da capital, usa para alunos do 6º ao 9º ano a coleção Araribá Conecta, de Matemática (Editora Moderna), que também faz parte do PNLD 2024. O Colégio Bandeirantes, cujos alunos utilizam tablets na sala de aula, pede a versão digital do livro Expedições Geográficas, de Geografia, (Editora Moderna)”.

=> SP troca livros por material digital: escolas particulares usam obras rejeitadas pelo governo

Em contrapartida, o material que o governo está distribuindo, como visto, está pontuado por erros conceituais e históricos primários, o que levou a suspensão de sua distribuição até que fossem corrigidos.

E que continuaram, mesmo após declaração da secretaria que a correção já havia sido providenciada:

“Mesmo na nova versão, professores das escolas estaduais continuam a encontrar erros conceituais no material programado para ser usado no 3º bimestre. Em um deles, por exemplo, na aula de “defeitos da visão” para alunos do 6º ano, o texto fala sobre o uso de lente convergente para corrigir hipermetropia, mas a imagem apresentada aos alunos é de uma lente divergente. Em outra aula, no material de matemática do 8º ano, um exercício afirma que há um triângulo equilátero (todos os lados com a mesma medida) inscrito em um quadrado —o que não é possível e é comprovado pelo teorema de Pitágoras.”

=> Mesmo após revisão, material didático do governo Tarcísio continua com erros

A matéria ainda assinala que “Segundo a Abrelivros (Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais), que reúne as principais editoras didáticas do país, os livros didáticos comprados pelo MEC levam ao menos dois anos para ficarem prontos. Depois, eles ainda são submetidos a uma revisão externa para identificar erros ou inconsistências”.

…e a digitalização a toque de caixa também…

Todos estes erros e atropelos acabaram por levar à demissão de Renato Dias, empresário da educação privada e coordenador pedagógico da Secretaria e homem de confiança de Feder. Em seu lugar foi nomeada Bianka de Andrade Silva, que, de acordo com a Rede Brasil Atualtambém tem forte atuação na rede privada, com passagens por instituições particulares como Escola Mais e Arco Educação, que vende plataformas e ferramentas tecnológicas educacionais, onde trabalhou como gerente de produtos digitais”.


Ver também

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  • Covid 19 Evolução em cada município de SP/Celular

  • COVID-19: Evolução no Estado de SP 01/01/22 a 17/11/23