Privatização da Zona Azul: monopólio e pagamento antecipado em ano eleitoral

Privatização da Zona Azul: monopólio e pagamento antecipado em ano eleitoral

O que é a Zona Azul

No dia 30 de dezembro passado (2019) a Zona Azul completou 45 anos de existência. Criada em 30/12/1974 no município de São Paulo, durante a gestão do prefeito Miguel Colasuonno, e hoje operando em diversas cidades e estados, instituiu a cobrança por estacionar em local público na cidade, o chamado “estacionamento rotativo pago”, como explica a CET – Companhia de Engenharia de Tráfego.

O estacionamento rotativo pago, conhecido como Zona Azul, foi instituído na cidade de São Paulo em 30/12/1974, por meio do Decreto nº 11.661, com o objetivo de promover a rotatividade das vagas de estacionamento, racionalizar o uso do sistema viário em áreas adensadas, organizar e disciplinar o espaço urbano de forma a aumentar a oferta de vagas.

=> Zona Azul (CET)

No dia 10/12/19 a Zona Azul foi privatizada, e deverá ser explorada por 15 anos por uma única empresa, a Hora Park, do grupo Estapar, que por sua vez pertence ao banco BTG Pactual. O BTG tem Paulo Guedes, atual ministro da economia, entre seus fundadores.

Monopólio e pagamento antecipado em ano eleitoral

As dezenas de milhares de vagas da Zona Azul, distribuídas por milhões de metros quadrados no coração da cidade, deverão ser entregues a partir de fevereiro para serem operadas pela empresa Hora Park, em resultado de um conturbado processo de privatização.

O anúncio foi proclamado em dezembro pela prefeitura, que, a despeito da crescente rentabilidade de que vem desfrutando com a Zona Azul,  alega que terá ganho econômico com o negócio:

A empresa HoraPark Sistema de Estacionamento Rotativo apresentou a proposta vencedora: R$ 1,346 bilhão, sendo R$ 636,0 milhões em parcelas mensais até dezembro de 2020. O ágio foi de 317%. O restante, R$ 710,0 milhões, será pago também em parcelas mensais de R$ 4,172 milhões, corrigidas pelo IPCA, de 2021 até 2035. Haverá ainda pagamento de outorga variável proporcional à receita bruta da concessionária: 6,5% sobre o montante de receita até R$ 150 milhões e 15% sobre o montante que ultrapassar os R$ 150 milhões.

A segunda colocada foi a empresa Explora Parking, que apresentou proposta financeira de R$1,045 bilhão, também em parcelas mensais, com ágio de 150%.

=> Ganho econômico da Prefeitura com concessão da Zona Azul é de R$ 2,015 bi (PMSP 10/12/19)

A operação foi sacramentada pelo poder municipal dia 20/12, em reunião virtual da Comissão Especial de Licitação (CEL), como publicado no Diário Oficial de 21/12, que considerou como dirimidas todas as dúvidas levantadas sobre o certame:

Deste modo, as dúvidas existentes foram dirimidas e a CEL deliberou que os documentos de habilitação apresentados cumprem na totalidade as exigências de Habilitação do Edital de Licitação 001/SMT/2019. Assim, dá-se por habilitada a Hora Park Estacionamento Rotativo LTDA.

Controle privado será bastante amplo

A presença da iniciativa privada já existe na operação da Zona Azul, mas somente com uma participação de 10%  na venda dos cartões digitais de estacionamento, e em regime de permissão, que pode ser suspenso pela prefeitura a qualquer momento. Que é o que vai acontecer agora, quando as 15 empresas que prestam o serviço serão obrigadas a deixar o negócio.

A abrangência da intervenção privada desta vez será bem mais ampla, pois concede não só a venda integral dos cartões, mas também quilômetros de meio fio para exploração comercial, como explicita o Objeto do Edital: “Concessão Onerosa para Exploração, por Particulares, do Serviço de Estacionamento Rotativo em Vias e Logradouros Públicos do Município de São Paulo” => Edital de Licitação.

Como visto, a concessão deverá ser por 15 anos, pelo que serão pagos R$ 1,346 bilhões só de outorga fixa, R$ 636 milhões dos quais estão programados para serem pagos até o final deste ano eleitoral. Um dado adicional importante é que aí se  inclui um adiantamento, previsto no edital, de R$ 595 milhões, a ser quitado ainda na gestão Covas, e portanto em detrimento das próximas gestões.

Contrapartidas

O edital, e o contrato, por outro lado, estabelecem tambem as contrapartidas a serem cumpridas pela concessionária. Dentre elas se destaca o compromisso pela construção de um “centro de controle operacional para o sistema digitalizado com a diversificação dos meios de pagamento para o usuário, além de instalação, manutenção e conservação da sinalização das vagas”.

Necessário destacar, no entanto, que o sistema digital já está plenamente operacional, e dando bons resultados, uma vez que aumentou expressivamente a rentabilidade do serviço como será visto adiante.

As vagas, por sua vez, podem ser aumentadas ou requisitadas de volta pela prefeitura no caso de novos projetos que requeiram formas alternativas de uso da via pública. Neste caso, no entanto, estão previstas formas de compensação para a concessionária de maneira a evitar “desequilíbrio econômico financeiro”.

=> Caderno de Encargos da Concessionária

Mega estacionamento no coração da cidade

As vagas a serem disponibilizadas para a vencedora da licitação cobrem uma vasta área do município. Uma ideia das dimensões do negócio pode ser obtida a partir do mapeamento disponibilizado pelo site da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), publicado na pg.5 do Anexo IV do Edital (Memorial Descritivo) . A imagem mostra, em azul, a localização dos estacionamentos em via pública, mais adensados em uma faixa entre as duas marginais, cobrindo a região mais dinâmica da cidade, o chamado Centro Expandido de São Paulo.

No total, serão disponibilizadas, de início, 43.521 vagas, que podem ser usadas mediante pagamento de R$5/hora, valor a ser reajustado anualmente pelo IPCA. Está previsto que este total poderá ser ampliado até 60.800 vagas no período de concessão.

De maneira a se ter uma ideia das dimensões da área pública servida pelas vagas da Zona Azul, seu adensamento entre as duas marginais foi delimitado com o auxílio do Google Earth. Só aí chega-se a um polígono de mais de 31 km de perímetro e área de 51 milhões de m², todo compreendido dentro do Centro Expandido mapeado pela CET, que é a área maior:

 

Serviço superavitário e rentabilidade crescente

Segundo a Folha, o serviço hoje é superavitário para a prefeitura:

Atualmente, o serviço é superavitário. Em 2017, a prefeitura gastou R$ 21 milhões com fiscalização e teve R$ 89 milhões de receita. No ano anterior, quando o serviço ainda era à base de papel, arrecadou menos: R$ 55 milhões.

=> Doria planeja conceder Zona Azul à iniciativa privada por R$ 1 bilhão (Folha 20/03/18)

Como visto, a digitalização dos cartões de estacionamento, introduzida em julho de 2016, aumentou a rentabilidade. Segundo o G1, “turbinou a arrecadação da prefeitura”:

A Zona Azul digital, implantada em 2016 pela gestão Fernando Haddad (PT), turbinou a arrecadação da Prefeitura de São Paulo com o estacionamento na rua. Enquanto os antigos talões rendiam, em média, R$ 850 mil por mês aos cofres públicos, a reserva de vagas por aplicativos levou a um faturamento mensal na casa dos R$ 6,5 milhões.

=> Zona Azul digital alavanca arrecadação da Prefeitura com estacionamentos na rua (G1 18/05/2017)

Processo conturbado

O processo de privatização da Zona Azul, lançado ainda por João Doria, pouco antes do final da sua breve gestão na prefeitura, sofreu diversas contestações e embargos, tendo sido temporariamente suspenso tanto pelo TCM (Tribunal de Contas do Município) quanto pela Justiça. Uma decisão do Tribunal de Justiça de SP, no final do ano passado (9/12), no entanto, acabou por liberar a abertura dos envelopes com as propostas dos licitantes, reduzidos a somente dois, tendo sido declarada como vencedora a Hora Park.

Além do já mencionado pagamento antecipado em ano eleitoral, os principais vícios alegados nestas contestações dizem respeito à falta de debate público, favorecimentos indevidos à concessionária, tanto no processo licitatório, que teria sido direcionado para a Hora Park, e portanto para o BTG Pactual, quanto nos termos do contrato de concessão, que, entre outras coisas, permite “receitas acessórias” na exploração do negócio, a serem definidas futuramente ao sabor da concessionária, sem qualquer concorrência pública.

Este conjunto de questões levou a justiça, atendendo a um pedido do Ministério Público, inconformado com o não atendimento de recomendação feita à prefeitura para anular o edital, a suspender liminarmente o certame:

Segundo a decisão da Justiça, o MP [Ministério Público] alega ter expedido recomendações à prefeitura para a anulação do edital das licitações por conta de “supostos vícios” que, segundo o órgão, “não foram cumpridas” pelo governo municipal.

Ainda segundo a decisão judicial, documentos enviados pelo MP revelam que a audiência pública, feita em 12 de novembro deste ano, durou 25 minutos, não sendo possível aos participantes, durante este tempo, “o direito de formular questionamentos e opiniões orais.”

O magistrado destaca ainda o risco de prejuízo aos cofres públicos, por conta de o edital exigir pagamento antecipado de outorga fixa em mais de R$ 595 milhões, com prazo final já em 2020. “Ou seja, 40% do valor estimado do contrato, com prazo de 15 anos, situação essa que implicaria em risco ao erário público […] A Auditoria mantém, desde o início, o entendimento de que o modelo proposto não possui sustentação técnica, econômica, financeira e jurídica”, diz trecho da decisão judicial.

=> Justiça suspende licitação da Zona Azul em São Paulo (Folha 09/12/19)

Suspensão da liminar

A liminar acabou por ser suspensa, no mesmo dia, pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Manoel de Queiroz Pereira Calças, de maneira a evitar, segundo ele, o “retardamento do processo licitatório” em um contexto em que a “ilegalidade não é manifesta a ponto de justificar a drástica solução de interrupção total do trâmite”, levando em conta que o tribunal de contas prevê a reanálise futura da decisão após inclusive conhecer a manifestação da prefeitura.

A decisão explicita ainda que a suspensão da liminar tem efeito somente “até a sentença de primeiro grau”, o que pode significar mais turbulência pela frente.

=> https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/deciso_judicial_09-12-19_1576013409.pdf (9/12/19)

Processo licitatório teria sido direcionado

Já em março de 2018, quando Doria anunciou a privatização da Zona Azul, o então secretário municipal de desestatização foi claro ao declarar o interesse da Estapar, que acabou por ganhar sozinha a licitação, em assumir a Zona Azul. Quem informa é o G1:

Segundo o secretário municipal de Desestatização, Wilson Poit, a empresa Estapar, que pertence ao Banco BTG, manifestou interesse em administrar a Zona Sul. Ainda de acordo com ele, isso gerou um chamamento público para atrair outras empresas interessadas na prestação do serviço, incluindo companhias estrangeiras.

=> Concessão da Zona Azul à iniciativa privada por até 30 anos deve render mais de R$ 1 bilhão (G1 20/03/18)

Embora a declaração mencione o incentivo à participação de outros concorrentes, quem ganhou foi exatamente aquele que manifestou o interesse inicial. O que se tem alegado é que esta coincidência, na realidade, foi fortemente viabilizada por condições estabelecidas no edital, tais como exigir o adiantamento de R$ 595 milhões, para além do faturamento esperado para 2020. O jornalista Luis Nassif chamou a atenção para o fato:

Quem tem R$ 595 milhões em recursos, é dono de um estacionamento, Estapar, com capital social de R$ 625 milhões, e não possui experiência prévia em cartão digital? O Banco BTG, de André Esteves, o banco da Sete Brasil e de um sem-número de projetos polêmicos, poupado inexplicavelmente pela Lava Jato.

É nítido o direcionamento da licitação para o BTG.

=> Xadrez da grande jogada do BTG com a Zona Azul, por Luis Nassif (06/12/19)

Importante observar que o resultado da licitação foi antecipado pelo jornalista, uma vez que o artigo foi publicado dia 6/12, portanto 4 dias antes da abertura dos envelopes.

Receitas acessórias seriam o “pulo do gato”

Ainda no mesmo artigo, Luis Nassif indica que o “pulo do gato” de todo o negócio estaria na liberação de “receitas acessórias” pelo edital:

Mas o pulo do gato está em outra brecha aberta pelo edital – e aceita pelos três conselheiros do TCM. Trata-se do item “receitas acessórias”, possibilidades de explorar livremente outras possibilidades no contrato, repassando parte do lucro à CET.

[…] Hoje em dia, o banco digital do BTG tem um número inexpressivo de clientes.  Com o controle do Zona Azul, terá uma cliente potencial de 3 milhões de usuários absolutamente fiéis – porque sem alternativa para adquirir CADs [Cartão Azul Digital]. Mais ainda. Saberá as regiões frequentados pelos veículos, as lojas no entorno.  Essa base de dados tem um valor potencial imensamente superior ao do próprio contrato da Zona Azul.

O Ministério público reforça o argumento, lembrando que a liberação das receitas acessórias poderiam configurar um privilégio indevido da concessionária. Acrescentou que o pagamento antecipado favorece a gestão Covas e que o prazo de 15 anos não foi devidamente justificado “entre outros possíveis problemas”:

Em seu pedido, a Promotoria argumentou que há brechas no edital para que a concessionária lucre com receitas acessórias (como a exploração dos bancos de dados de milhões de usuários) sem licitações específicas, o que poderia configurar privilégio; que o pagamento antecipado da outorga fixa favorecerá apenas a gestão Covas, adiantando receitas futuras em detrimento das subsequentes administrações; que a pertinência do prazo de 15 anos não foi apresentada; entre outros possíveis problemas.

=> Por R$ 1,3 bilhão, gestão Covas concede Zona Azul de SP por 15 anos (Folha 10/12/19)

Problemas também são apontados para o futuro da mobilidade urbana

Em uma outra linha de contestação, a privatização da Zona Azul, e particularmente o propósito de se aumentar o número de vagas, estaria atentando contra a tendência de liberar a via pública para modais de transporte mais eficientes e menos poluentes que o automóvel. O Ministério Público manifestou esta preocupação quando recomendou a suspensão da licitação

“É um sistema que vai causar um prejuízo não só econômico, mas também quer aumentar o número de vagas para estacionamento na cidade em torno de 20%. Uma cidade que já não tem mobilidade vai ficar muito mais parada sem que se pense nisso. Se lançou um edital sem pensar nesses fatos”

=> MP recomenda que Prefeitura de SP suspenda licitação para concessão da Zona Azul (G1 29/05/19)

Esta questão será retomada em um futuro post.